Não fosse a terrível pandemia do SARS-COVID19, o ano de 2020 seria lembrado pelos operadores do Direito Tributário como o ano da mudança no relacionamento fisco e contribuinte, que foi marcado ao longo de anos pela adversidade resultante de uma desconfiança de ambas as partes e encontrou, finalmente, o caminho do diálogo com a transação tributária.
No lado das autoridades fiscais, os contribuintes eram primeiramente vistos como efetivos sonegadores e, depois de ganharem alguma confiança, apenas como “potenciais sonegadores”. Cada movimento de um contribuinte poderia ser uma manobra que faria com que ele deixasse de pagar aos cofres públicos valores devidos. Não havia reflexão sobre a correção e legalidade do que era efetivamente devido e, muito menos, a consideração aos fatores econômicos que podem fazer com que o contribuinte mais zeloso não consiga pagar suas obrigações tributárias. É fato que uma parcela considerável dos contribuintes com seus subterfúgios e defesas vazias contribuíram para a formação desta imagem tão negativa, prejudicando a esmagadora maioria dos contribuintes que tentam fazer tudo certinho.
Do lado dos contribuintes, grande parte da cobrança fiscal era primeiro inconstitucional ou ilegal antes de ter alguma chance de ser apenas uma exigência tributária para a manutenção do Estado. Muitos agentes públicos, em razão de tristes episódios de corrupção, eram encarados como potenciais criminosos, colocando-se tudo o que diziam em dúvida. Alguns advogados, consultores e contadores com pouca consciência de suas responsabilidades profissionais ajudavam seus clientes a esconder fatos geradores (como se isto fosse planejamento) e tornavam os agentes públicos em espiões que precisavam ser despistados pelos contribuintes. Para as crises financeiras, o remédio era parar de pagar os tributos e, no fechamento da empresa, deixar o problema fiscal de lado, para prescrever, fazendo com que os procuradores públicos se tornassem meros “caçadores das empresas perdidas”. Não se via no agente público um profissional que iria verificar se algo ocorreu de errado com o valor arrecadado, identificar o erro, permitir que o contribuinte possa continuar sua atividade pagando corretamente o que deve e, com isto, garantir o dinheiro necessário para a manutenção das instituições públicas.
É preciso reconhecer que o contribuinte é o grande herói da arrecadação, porque ele é quem faz existir o que será arrecadado. O setor público não produz riquezas que possam ser tributadas, apenas o setor privado faz isto. De outro lado, os agentes arrecadadores do Estado são os heróis da sociedade, pois, sem eles, não existiria a maior parte dos recursos públicos que permitem a atuação do Estado na sociedade. O cumprimento de obrigações fiscais quase nunca se daria de forma espontânea. Enfim, esta relação fisco-contribuinte é simbiótica, um não vive sem o outro.
E é por essa razão, de relação simbiótica, que 2020 marcou o início de uma nova história: a possibilidade prevista em lei do diálogo entre contribuinte e fazenda pública na busca de soluções para permitir a arrecadação de tributos em atraso sem impedir a continuidade das empresas. É o ano em que se iniciam as transações tributárias.
Presente no Código Tributário Nacional desde a década de 60, a transação tributária esperou mais de quatro décadas para ser regulamentada em lei e apresentar-se como útil e eficaz para a sociedade. Uma pena! Poderíamos estar bem mais avançados nas formas de arrecadação eficiente de receita tributária.
A Lei 13.988, de 14 de abril de 2020, trouxe, finalmente, a possibilidade de celebração de transações entre Procuradoria da Fazenda Nacional e os contribuintes. O objetivo é permitir que o contribuinte possa reunir toda a sua dívida com a fazenda pública federal e apresentar um plano para liquidação com algum desconto, mas principalmente um racional de pagamento da dívida coerente com os seus limites financeiros. Embora também preveja a transação por adesão, nosso foco aqui são as transações individuais aquelas que trazem uma nova forma de soluções de conflito para o passivo tributário.
Isso, porque, na transação por adesão, a fazenda pública apresenta um conjunto de condições para pagamento com o qual o contribuinte pode aderir permitindo uma solução para o seu passivo tributário. É iniciativa da Fazenda Pública que deixa pouco espaço para a individualização do caso de cada contribuinte. Mas, para os contribuintes com passivo tributário acima de 15 milhões de reais é possível a transação individual, perfeito exemplar da aproximação entre fisco e contribuinte, onde o contribuinte apresenta seu plano para quitar a dívida, como devedores fazem ao tentar renegociar seus débitos privados com seus credores. Em nome da transparência as transações são públicas e podem ser consultadas no site da Fazenda Nacional. Vale ver que estamos avançando.
Ainda há muito para evoluir em matéria de transação tributária. A meu ver, um dos principais pontos é o estabelecimento de um prazo máximo de 84 meses para o encerramento das obrigações transacionadas. Diante da realidade do endividamento dos contribuintes e quando comparado com o que vemos no caso de dívidas privadas, é um prazo ainda pequeno, o que torna as prestações muito altas. Na alteração recente da Lei de Recuperação Fiscal, há previsão de prazo maior para entidades em recuperação judicial, 120 meses, o que já melhora um pouco, mas o ponto fundamental é que o prazo deveria ser o resultado de uma análise do valor da dívida e da capacidade financeira, o que pode exigir prazos mais longos.
O ano de 2021 (e talvez os próximos também) serão muito difíceis para a economia. Ainda não é possível saber as consequências da pandemia e sequer avistar quando ela estará sob controle. Muitas empresas não sobreviverão e outras mais precisarão de muita ajuda para superarem o momento. Será uma boa oportunidade para testar o diálogo e ampliar ainda mais o leque de contribuintes que possam acessar as transações individuais.
*Silvania Tognetti é advogada, tributarista e sócia do Tognetti Advocacia.