Com precisão cirúrgica, o Dr. Ives Gandra da Silva Martins fala, nesta entrevista exclusiva, de fatos recentes no Congresso e de importantes temas ligados ao Ordenamento Jurídico Brasileiro na atualidade.

Marcus Frediani

Embora garantido pelo texto da Constituição, nos últimos tempos o princípio da separação dos Poderes da República parece não estar sendo observado como deveria pela Suprema Corte, dada à extensão da prerrogativa desta de intervir nas atividades dos demais, gerando muita polêmica e colocando em xeque a legitimidade constitucional e democrática dessas decisões jurisdicionais.

Em busca de respostas para esse e para outros angulosos temas da atualidade jurídica e institucional brasileira, a revista Siderurgia Brasil conversou com o jurista, advogado, professor e escritor brasileiro, professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie e membro da Academia Brasileira de Filosofia, Dr. Ives Gandra da Silva Martins, uma das maiores autoridades de direito do país, em todas as épocas, que, gentilmente, nos concedeu esta entrevista exclusiva. Confira!

Siderurgia Brasil: Dr. Ives, como o senhor interpreta a recente derrota na Câmara dos Deputados da PEC que propunha o voto impresso em eleições, plebiscitos e referendos?
Dr. Ives Gandra Martins:
Atribuo a derrota da PEC do voto auditado à forma incorreta como foi conduzida a campanha por parte do Executivo. O voto eletrônico auditado é um voto eletrônico de segunda geração, enquanto o voto eletrônico hoje adotado é de primeira. Ou seja, ao votar, confirmo apenas na tela, mas não há o comprovante que cai numa urna. Se a campanha tivesse sido feita em torno da evolução do sistema, e não atacando eventuais fraudes não comprovadas desde a sua adoção – e, de resto, de difícil comprovação, se houvesse –, não teríamos tido a polêmica que se criou. Se dissesse que seria uma evolução do sistema já adotado por outros países, que não adotaram o atual brasileiro – fala-se que do concerto 193 nações da ONU, só três países fazem uso da urna brasileira, a saber, Brasil, Butão e Bangladesh –, teria sido mais fácil convencer a opinião pública e o Congresso. Ainda nesse âmbito, não creio que o TSE se curvasse, pois é próprio das administrações acostumadas com qualquer sistema adotado serem desfavoráveis a mudanças que implicariam estudo e adaptação às exigências que substituem as regras antigas, às quais já se acostumaram. Os servidores de carreira de todas as administrações em todo o mundo são sempre os últimos a concordarem com modificações dos regimes aos quais já se acostumaram. O nosso sistema é rejeitado pela esmagadora maioria dos países e deve haver uma razão pela qual isso aconteça.

Ao examinarmos os embates recentes entre o Poder Executivo e o Poder Judiciário, pode se inferir que tais conflitos ferem os princípios consubstanciados de harmonia e independência entre os poderes, da forma prevista na Constituição Brasileira. Aliás, nos últimos tempos, tais situações conflitantes vêm ganhando dimensões gigantescas no Ordenamento Jurídico Brasileiro, uma vez que surgem com uma frequência bem maior do que antes, tomando grande espaço na mídia e causando não só desconforto entre os poderes nacionais, como também reflexos em toda a sociedade. Por que isso está acontecendo e quais seriam as soluções para evitar ou mesmo eliminar tais sobreposições e interferências?
A meu ver, estamos assistindo uma invasão auto-outorgada pelo Poder Judiciário na competência dos outros Poderes, algo que não havia no passado. Há mecanismos de defesa contra isto na própria Constituição. Por exemplo, o artigo 49, inciso XI, assim redigido: Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: I – resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional; […] XI – zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes. (https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/con1988_04.10.2017/art_49_.asp) permite ao Legislativo desobedecer uma ordem judicial que implique invasão de competência, a meu ver, pela edição de um decreto legislativo (Art. 59, inciso VII), único instrumento, sem maiores explicitações na Lei Suprema, nela colocado para esta autoproteção. Só se o conflito se der e não houver solução é que poderia recorrer à parte final do artigo 142 assim redigido: “Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”

Ou seja, essa interferência só poderia se dar em circunstâncias bem específicas, correto?
Esse dispositivo está no Título da Constituição denominado “Da defesa das Instituições democráticas e do Estado”, e só pode ser utilizado se os abusos de um poder sobre o outro tornar-se insuportável e de difícil solução pelas vias normais. Assim, o Supremo Tribunal Federal não poderia legislar nem mesmo nas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão do Legislativo. Está o artigo 103 parágrafo 2º da Lei Suprema assim disposto: § 2º. Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias.” À evidência, o denominado ativismo judicial ou politização do Judiciário ou judicialização da política tem origem numa corrente doutrinária denominada consequencialista, pela qual o Poder Judiciário poderia atuar nos vácuos legislativos ou corrigir rumos do Executivo. Ocorre que a Constituição não albergou tal linha de pensamento, visto que esta teoria pode ser resumida para os leigos como se os fins justificassem os meios. Assim, o Poder Judiciário, apesar da qualidade de seus membros, é hoje o maior foco da insegurança jurídica, política e econômica no Brasil.

Sabemos que a Magistratura não compactua com a impunidade. Entretanto, na leitura de alguns analistas, a recorrência de casos de vendas de sentenças, desvios de verbas, nepotismo, aparelhamento político e conflitos éticos no Judiciário que acabam impunes, prescritos ou com punições leves aparentemente revelam a debilidade dos mecanismos de transparência e controle na Justiça, gerando críticas e desconfiança na sociedade. Qual sua percepção sobre esse tema tão delicado, como tal situação poderia ser equacionada?
As penas para a Magistratura, por não ter ainda alterado a Lei Complementar 35/79 – que deveria ter sido revogada após a promulgação da Constituição Federal de 1988, mas que depende de iniciativa do Judiciário – não cuida de punições severas, sendo a aposentadoria compulsória ainda a pena maior. A própria Emenda 45/04, que criou o Conselho Nacional de Justiça para julgar magistrados, embora com participação de representantes do MP, Congresso Nacional e OAB, em suas punições, que não são muitas, aplica, comedidamente, sanções a magistrados. Estou convencido que o Poder Judiciário é constituído por elementos com maior conhecimento humanístico do que pessoas dos outros poderes, em sua média. Participei de três bancas de concurso para magistratura (duas de Magistratura Federal e uma de estadual) e sei como é difícil passar num concurso. Tinha, muitas vezes, pena dos candidatos que no exame oral eram submetidos pelos examinadores a uma verdadeira tortura intelectual. Apesar disso, tenho a impressão de que as penas que sofrem os magistrados que se desviam é menor do que as que sofrem os membros de outros Poderes, e muito menor do que as que sofrem os comuns mortais que não pertencem ao poder público. E quanto à Suprema Corte, cujos ministros admiro, nem investigados podem ser. Eles estão acima de qualquer suspeita e são os intocáveis do Poder Público.

Na política brasileira, temas que aparentemente deveriam estar circunscritos ao debate democrático saudável, acabam ganhando contornos ideológicos ferozes. É o que muita gente acredita que está acontecendo com a atual CPI da COVID, que tramita no Congresso. Como o senhor analisa esse tema e, em termos objetivos, o senhor acredita que a CPI da COVID é “oportuna” ou meramente “oportunista”?
Minha resposta é de que a CPI da COVID pretende derrubar o Presidente da República, e não buscar a verdade. Se pretendesse ter-se-ia que ouvir cada Governador que recebeu recursos para combater a pandemia. É curioso que o STF que, contra o disposto no artigo 21 inciso 18 da CF assim redigido: Art. 21. Compete à União: […] XVIII – planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações; […]”, que dava competência exclusiva à União para planejar e combater a calamidade pública, autorizou cada município e cada estado a combater a calamidade da COVID como quisesse. É, todavia, o próprio Supremo que autorizou a CPI da COVID, que proibiu que os Governadores depusessem na referida Comissão. Como se percebe, não é a busca da verdade, mas a intenção de derrubar o Presidente que está sendo objeto da CPI, em que seus adversários são a maioria da composição. Aliás, entre as curiosas decisões da Suprema Corte – cujos ministros reafirmo admiro e cuja obra conheço e cito, repetidas vezes – é a de considerar democrático o movimento “Fora Bolsonaro”, admitindo sua permanência e passeatas, mas considerar antidemocráticas aquelas pessoas que ousam dizer “Fora Ministros da Suprema Corte”, mandando-os prender. Tenho receio de que a liberdade de expressão está sendo amordaçada neste país, o que não é bom para a democracia, para a economia brasileira, para o desenvolvimento social e para o bem-estar do povo.