Práticas comerciais feitas pela indústria chinesa do aço precisam ser combatidas para que as empresas latino-americanas possam competir em pé de igualdade
Alejandro Wagner*
Entre os anos de 2000 e 2022, a produção de aço na América Latina avançou 12%, para 63 milhões de toneladas anuais. Embora o crescimento tenha sido inferior à média mundial ex-China, de 20%, quando incluímos o mercado chinês essa expansão muda de perspectiva. A produção chinesa saltou 692% nesse período, chegando a 1,018 bilhão de toneladas.
Essa incrível disparidade entre a escala da produção na China e na América Latina conta apenas uma parte da história. E, para sermos francos, a parte mais adocicada. Mergulhando nos números, vemos um cenário bastante preocupante.
O primeiro ponto de alerta é que, nesse período de 20 anos, houve um processo contínuo de desindustrialização do aço latino-americano, invertendo os caminhos do comércio internacional. No ano 2000 nós exportamos 163,4 mil toneladas para a China, enquanto eles vendiam para o lado de cá do mundo cerca de metade desse volume. Realizando o comparativo do ano passado com o ano de 2000, nossas exportações caíram 94%, para meras 9,2 mil toneladas, enquanto as vendas de aço chinês para a América Latina saltaram 8.690%, para 7,09 milhões de toneladas.
Nos últimos 22 anos, a América Latina deixou de ser exportadora líquida de aço para a China e se tornou um grande mercado consumidor. Nesse processo, é natural que a capacidade produtiva local tenha sido prejudicada, impactando empregos e a pujança econômica da região.
Ao lado desse movimento de desindustrialização, a América Latina vem sofrendo um processo de primarização de sua indústria. As exportações de matérias-primas chinesas para a região recuaram 21% nesse período que estamos analisando, para 1,53 milhão de toneladas, enquanto as nossas exportações de matéria-prima para a China saltaram 1.458%, para 261,7 milhões de toneladas. No ano 2000, a América Latina já era uma forte exportadora de minério bruto – e essa situação somente se agravou.
Como consequência direta desse grande aumento das exportações de matérias-primas, toda a América Latina vem perdendo relevância como produtora de itens de valor agregado, se concentrando na extração de matérias-primas com menor valor agregado. Para a balança comercial da região, isso é péssimo: cada vez mais, vendemos minério bruto para adquirir bens processados, o que afeta nossa geração de empregos, a renda da população, a balança comercial da região e as perspectivas de geração de um futuro mais próspero.
Temos sentido na pele as consequências dessa mudança de vocação da indústria do aço na América Latina. No final de setembro deste ano, a Gerdau paralisou parte de sua capacidade produtiva no Brasil, com 600 pessoas com contratos de trabalho suspensos de Norte a Sul do país. E esse é apenas um exemplo entre tantos que temos na região. O fato é que estima-se que neste ano haja um excesso de capacidade produtiva da ordem de 650 milhões de toneladas – e a produção naturalmente migra para onde os custos são menores.
É impossível competir
Na raiz de todas essas questões está a impossibilidade de competir em pé de igualdade com a indústria chinesa. E é impossível competir porque eles atuam com regras muito diferentes das de qualquer país minimamente interessado em desenvolver a competição e estimular o empreendedorismo e uma cultura de livre mercado. O aço chinês não compete de forma isonômica com o aço latino-americano – ou, para ser mais exato, com o aço fabricado em qualquer lugar do mundo.
Mas, por que é impossível competir com a indústria chinesa? O estado chinês controla as empresas locais, subsidiando suas empresas siderúrgicas (e de vários outros setores da economia). Dessa forma, é o estado que decide quanto custa produzir aço, reduzindo de forma drástica os custos com energia e insumos, aceitando atuar sem lucros (ou mesmo com margens negativas) para dominar o mercado.
Isso tem um nome: dumping. O governo chinês, focado em ganhar mercado, fomenta um sistema de custos baixíssimos, à custa de fortes subsídios e de desrespeito aos trabalhadores, que atuam em uma condição inaceitável para os padrões ocidentais. Nossa indústria quer competir e poderia muito bem competir em condições mais equitativas – mas a realidade é bem diferente.
Parte dos baixos preços praticados pelos chineses certamente vem de sua imensa escala de operação, mas o dumping é um problema real. De 1995 a 2022, foram abertas 1.489 denúncias na Organização Mundial do Comércio (OMC) referentes a produtos manufaturados metálicos, sendo 373 (25% do total) contra a China. Em 2022, das 66 ações vigentes na OMC referentes a produtos de aço, 43 se referiram à produção chinesa. Já no 1º semestre de 2023, de 63 ações vigentes, 40 se referem à produção da China.
O esforço chinês para vender por valores abaixo do preço de custo não é negativo somente para a concorrência – também é péssimo para o planeta. Os investimentos que têm sido realizados pelas empresas latino-americanas em iniciativas ESG, como a redução da pegada de carbono e o desenvolvimento do aço de baixas emissões de carbono, não são acompanhados pela China, onde o uso de fontes poluidoras continua a passos acelerados.
Para combater essa situação desequilibrada, é preciso tomar atitudes sérias. Em alguns dos países da América Latina, a tarifa de importação de aço fica muito abaixo do percentual de 25% adotado por mercados como Estados Unidos, União Europeia e, inclusive, México. No Chile, por exemplo, há uma preocupação significativa em relação aos preços distorcidos já que a produção de aço no país custa 40% a mais do que trazê-lo da China. Caso o panorama se mantenha, na siderúrgica de Huachipato, que atualmente se encontra em crise, fala-se em um risco de quase 20 mil empregos na região e cerca de 26,4 milhões de dólares que deixariam de ser injetados na economia.
Adotar uma alíquota semelhante teria o benefício de estimular a produção local, acelerar a geração de empregos, fomentar a inovação e valorizar as iniciativas ESG das empresas do setor. Além dessa medida, que poderia ser adotada rapidamente, outras iniciativas mais estruturantes podem e devem ser perseguidas em toda a América Latina, como a exigência de padrões de qualidade ambientais, e o trabalho conjunto com os governos locais, a fim de melhorar e incentivar a competitividade sistêmica dos países latino-americanos para tornar o setor siderúrgico cada vez mais potente.
Sociedade, governos e empresas podem fazer muito mais pela defesa comercial de um setor extremamente relevante para a economia latino-americana. O que não é possível fazer é assistir, passivamente, a indústria do aço ser destruída por práticas comerciais abusivas.
*Alejandro Wagner é diretor executivo da Alacero.