O setor de autopeças está preparado para acompanhar o ciclo de investimentos anunciado pelas montadoras, mas a concessão de ex-tarifários sem prazos de vigência cria distorções difíceis de serem corrigidas.
Henrique Patria e Marcus Frediani
Nesta entrevista exclusiva concedida à revista Siderurgia Brasil, o presidente da Abipeças e do Sindipeças, Cláudio Sahad, esclarece sobre as dificuldades que o setor vem enfrentando, principalmente com a existência dos ex-tarifários, que permitem a importação de autopeças com alíquota reduzida, desde que não haja capacidade de produção local de autopeça equivalente.
Ele alerta que tem ocorrido a importação com esse benefício de conjuntos inteiros, nos quais há componentes que existem na cadeia de produção de autopeças no Brasil. E isso, por extensão, prejudica a indústria nacional, que concorre de forma desigual com os importados. Confira e tire suas conclusões.
Revista Siderurgia Brasil: Até o ano passado, o setor de autopeças no Brasil vinha enfrentando dificuldades relacionadas ao déficit comercial em relação ao comércio internacional. Como está a situação neste momento?
Claudio Sahad: As previsões do Sindipeças indicam exportações da ordem de US$ 8,12 bilhões, 10% a menos do que em 2023. Enquanto isso, as importações, que totalizaram US$ 20,09 bilhões no período, uma cifra 7% superiores às do ano passado. Com isso, o déficit comercial do país em autopeças deve ser de cerca de US$ 12 bilhões, ou seja, um crescimento de 22,7% sobre o déficit registrado em 2023. A balança deficitária do setor é histórica, e esse déficit tem crescido expressivamente.
Nesse sentido, como o Sindipeças vem enfrentando o problema da chegada de peças ou de conjuntos prontos? Há alguma medida visando a estabelecer alguma regra para incentivar a indústria nacional?
O grande problema, apresentado e discutido detalhadamente em audiência com o vice-presidente da República e ministro de Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), Geraldo Alckmin, no dia 3 de julho, são os ex-tarifários, que permitem a importação de autopeças com alíquota reduzida, desde que não haja capacidade de produção local de autopeça equivalente. Porém, o que tem ocorrido é a importação com esse benefício de conjuntos inteiros, nos quais há componentes que existem na cadeia de produção de autopeças no Brasil. Isso tem deformado a balança comercial brasileira de autopeças, e inibido a produção de conjuntos de mais tecnologia. A quantidade de itens na lista passou de 100, em 2010, para três mil em 2021. E, hoje, está em 8,5 mil, número com potencial de chegar a dez mil daqui a poucos meses. Além da arrumação desse desvio, defendemos que haja prazo de vigência de três anos na concessão de ex-tarifários, em uma escala que permita previsibilidade às empresas. E defendemos ainda que haja critério objetivo para concessão aos pleitos, para o qual apresentamos uma proposta do tipo “Raise the Bar”, para corrigir tais distorções.
Como a indústria de autopeças está enfrentando a mudança de matriz para os carros elétricos ou híbridos? Existe movimentação de P&D trabalhando nesse sentido, com o objetivo de atender às futuras demandas?
Vou iniciar esta resposta de maneira mais abrangente: o setor de autopeças é formado por empresas de vários portes e origens de capital, desde pequenas e médias, nacionais e familiares, até grandes e gigantes multinacionais. Nossas PMEs são as fabricantes de componentes e, portanto, constituem a base da cadeia de fornecimento automotivo. Como gostava de definir Paulo Butori, ex-presidente do Sindipeças, elas são “os pés do gigante”. E sem pés fortes, o gigante pode cair. Os investimentos em inovação, necessários em qualquer opção de rota tecnológica, são feitos de forma sistemática e constante. Os PPPs do Rota 2030, agora no âmbito do Mover, por exemplo, eram e devem continuar sendo fundamentais para inserir as empresas menores na rota do desenvolvimento, pois não há possibilidade de fazer parte dessa engrenagem complexa se não houver saúde financeira para investir. Até hoje, apesar dos entraves à competitividade que todos os setores da economia têm de enfrentar no Brasil, o setor de autopeças tem cumprido rigorosamente seus compromissos de fornecimento e suprido as necessidades de seus clientes montadoras.
Objetivamente, há injeções previstas nesse sentido, uma vez que a Anfavea tem noticiado pesados investimentos visando a aumentar a sua produtividade, e melhorar seu desempenho em terras nacionais?
O setor de autopeças está preparado para acompanhar o ciclo de investimentos anunciado pelas montadoras. Quando há previsibilidade (demanda), nossas empresas também elevam seus investimentos. O volume previsto para 2024 é de cerca de R$ 6,2 bilhões, 6,5% superior ao do ano anterior, com fortes possibilidades de aumentar nos próximos meses. E outros indicadores relacionados a isso podem ser conferidos no link https://sindipecas.org.br/?126.
Qual o espaço que as indústrias brasileiras poderão conseguir no cenário mundial em função do avanço das exigências pela descarbonização na produção?
Em virtude da grande diversidade de nossa matriz para a produção de energia limpa, o Brasil pode ocupar um lugar de muito destaque nas decisões mundiais acerca da descarbonização no setor dos transportes. A título de informação, é importante citar que o ciclo de produção de um veículo no Brasil emite cerca de um terço do CO2 no comparativo a um veículo idêntico produzido na Europa. De fato, se tivermos políticas públicas para explorar adequadamente esse potencial, nossa indústria de transformação poderá performar um grande salto de qualidade. Defendemos a coexistência de várias rotas tecnológicas pró-descarbonização, que levem em conta as especificidades de cada mercado, pois o mundo é muito diverso, assim como são as fontes de energia. A eletrificação é um dos meios para redução da emissão de carbono, e pode coexistir com outros. No Brasil, considerando-se nossas especificidades e até mesmo as condições socioeconômicas, podemos ser grandes fabricantes de veículos híbridos flex, abastecidos com etanol. Também podemos nos tornar importante hub produtor e exportador de motores e veículos a combustão, que não devem ser mais produzidos na União Europeia e nos Estados Unidos, e que ainda terão longa vida no futuro, principalmente nos países em desenvolvimento, nos quais a população tem menor poder aquisitivo. Mas essa oportunidade também representa um grande desafio para toda a cadeia de produção. Uma das missões do Sindipeças é acompanhar as mudanças, a fim de manter seus associados bem informados, e com capacidade para refletir e tomar decisões estratégicas sobre o futuro de seus negócios.