Cercada de incertezas, a hipótese de facilitar a entrada de aço importado no Brasil divide opiniões e gera intensas polêmicas.
A pandemia da COVID-19 impactou o setor siderúrgico nacional de diversas e severas maneiras. Entre elas, em especial, a paralisação dos negócios – sublimada especialmente pela paralisação de diversos altos-fornos e de aciarias – gerou grandes danos associados a reclamações de desabastecimento por parte dos clientes e, ainda, teratologias como o aumento de preços da liga, criando cenários de tempestade perfeita. E, como não poderia ser diferente, acabou por jogar lenha na fogueira na discussão do famigerado “Custo Brasil” para a internalização de aço importado, trazendo à baila o vislumbre de os players locais na ponta da cadeia passarem a considerar a importação de aço como saída viável para solucionar o imbróglio.
Nessa toada, alguns fatos mais recentes acenderam novos focos de incêndio difíceis de apagar e/ou serem ignorados. Um desses sinais foi dado no dia 19 de maio, quando a Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC) solicitou ao governo a redução da tarifa de importação do aço, por meio de uma proposta entregue à Câmara de Comércio Exterior (Camex) do Ministério da Economia, pleiteando que esta fosse alterada de 12% para 1% por um período de 12 meses, em uma medida de “choque de oferta” para aumentar o fornecimento e fazer despencar os preços do produto.
“Pesquisas indicam que não estamos tendo o abastecimento suficiente. Por isso, há uma especulação de preços e o setor está pressionado”, afirmou na ocasião o presidente da CBIC, José Carlos Martins, ressaltando que tais levantamentos, auditados em abril por meio em um levantamento com 277 construtoras brasileiras, revelaram que 83,4% dos respondentes não estavam recebendo todo os vergalhões de aço solicitados às siderúrgicas, e 70,4% delas não estavam conseguindo encontrar os produtos não fornecidos em revendedores. “Por outro lado, a alta de preços do aço tem desacelerado o ritmo da construção civil, que, de acordo com o Índice Nacional de Custo da Construção (INCC) da Fundação Getúlio Vargas, subiram 25,7% nos 12 meses encerrados em maio. As maiores altas são dos tubos e conexões de ferro e aço, vergalhões e arames de aço ou carbono”, registrou Martins, para endossar a reivindicação à Camex.
À época, o Instituto Aço Brasil rebateu as argumentações da CBIC, pontuando, em primeiro lugar, que a produção e a oferta brasileiras de aço vinham crescendo mês a mês e, portanto, não havia desabastecimento. Complementarmente, negou a existência de especulação de preços do aço, creditando o aumento destes ao impacto do novo ciclo de commodities, que havia deixado todas as matérias-primas do setor mais caras ao longo do último ano, com destaque para a sucata de minério de ferro, cujos preços subiram 147,6% e 115,2%, respectivamente.
Agora, o mesmo discurso praticamente teve um replay durante a mais recente Coletiva de Imprensa do Aço Brasil, realizada no dia 22 de julho, quando a entidade divulgou alvissareiros dados de mercado referentes ao primeiro semestre de 2021, tais como a notícia de que a produção de aço bruto do Brasil cresceu 24% no primeiro semestre. Sobre as pressões do setor de construção civil para a redução das tarifas de importação de produtos siderúrgicos pelo governo federal, o presidente-executivo da entidade, Marco Polo de Mello Lopes, afirmou que não há risco de desabastecimento de produtos utilizados pelas construtoras. Lopes também negou qualquer tipo de negociação com Paulo Guedes, ministro da Economia, para manutenção dos preços até o final de 2021. “Não existe possibilidade de avançamos em relação a um acordo. O pedido de um determinado segmento, que começa com uma narrativa de que estamos retardando a produção para enxugar a oferta e aumentar preço não corresponde à realidade. Para que redução de imposto de importação? Conseguimos enxergar apenas um único objetivo: melhorar a margem de quem está no negócio de importar aço”, desferiu a pedrada, sem, contudo, deixar de demonstrar preocupação com as estatísticas das exportações das usinas brasileiras, que sofreram queda de 13,7% no primeiro semestre de 2021, bem como das importações, que evoluíram 140,6% de janeiro a junho deste ano, somando 2,5 milhões de toneladas.
REAÇÕES NA BOLSA
Mais combustível na referida fogueira foi lançado no último dia 23 de junho, quando a Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei de conversão da Medida Provisória nº 1.040/2021, conhecida como “MP da Modernização do Ambiente de Negócios no País”, cujo texto, sob pressão do lobby da indústria, retirou a proibição a um tipo de barreira comercial para a entrada de produtos estrangeiros no país: a vedação ao chamado “preço de referência”, para importações, uma prática que vigorou no País por mais de 70 anos e é vetada pela Organização Mundial do Comércio (OMC).
A seu turno, a fala do ministro da Economia, Paulo Guedes, durante live do Valor Econômico sobre a potencial redução das tarifas de importação de aço, realizada no dia 14 de julho, derrubaram o valor das ações das siderúrgicas na Bolsa de Valores, gerando também muitas dúvidas e especulações entre os investidores sobre o que havia de concreto nas falas do ministro.
Questionados na live do Valor pelos investidores, os analistas do setor emitiram uma nota dizendo que estes confirmaram o entendimento anterior de que a redução proposta seria de 10%, e não de 10 pontos percentuais. Ou seja, a tarifa de importação seria reduzida em 1,2 ponto percentual, de 12% para 10,8%, o que, na análise deles traria “impactos limitados” sobre a atividade das principais empresas do setor siderúrgico nacional, além de não representarem uma grande surpresa, uma vez que a abertura do mercado é uma pauta bastante conhecida do atual governo brasileiro, dinâmica esta que vem sendo observada com muita atenção pelas siderúrgicas estrangeiras, que estão lutando para acompanhar a forte recuperação da demanda desde o segundo semestre de 2020. E tudo isso somado à volatilidade dos preços do aço no exterior, bem como os efeitos da movimentação cambial, que têm sido consideráveis, continuaria a manter o apetite pelo aço importado em níveis ainda relativamente baixos.
Com tudo isso em tela, o cenário é, como não poderia deixar de ser, de incerteza e de um inquietante compasso de espera. E um sério agravante nessa história tem sido a impossibilidade alegada pelas usinas siderúrgicas nacionais de não continuarem a aumentar os preços do aço no mercado interno. “Com receio de pressão inflacionária, o ministro Guedes propôs que não se fizessem novos aumentos. Porém, respondemos que, por questões de compliance e de concorrência e políticas comerciais próprias, não poderíamos firmar esse compromisso”, enfatizou Marco Polo Lopes, do Aço Brasil, em recente reportagem ao jornal Valor Econômico. E, ainda segundo ele, o pé no breque na escalada dos preços tornou-se ainda mais impraticável à medida em que a perspectiva de o cenário de alta das commodities – razão dos reajustes no Brasil e no mundo –, que mostrava sinais de estabilização, efetivamente não se materializou, deixando claro também que a discussão sobre a redução de alíquotas de importação envolve todos os setores, não só o do aço, e que a iniciativa depende do aval dos sócios do Mercosul.
IMPACTOS NA DISTRIBUIÇÃO
E se a decisão de importar aço ou não importar passa por vieses e análises de alta complexidade, alguns fatos concretos levam à reflexão do que seguir para um lado ou para o outro pode ocasionar. Exemplo? Bem, segundo dados informados pelo Instituto Nacional dos Distribuidores (INDA) em sua mais recente Coletiva Mensal de Imprensa, no dia 21 de julho, a chegada de mais de 220 mil toneladas de aço importado no mês de junho ao Brasil impactou negativamente os números da distribuição e processamento de produtos siderúrgicos. Embora não se possa assegurar com absoluta certeza de que isso tenha sido o fato gerador, fato é que a queda nas vendas do setor foi de 6,4% em relação a junho, atingindo a 300 mil toneladas, contra 320,3 mil toneladas registradas no mês anterior. Coincidência ou não, os produtos que mais chegaram – os laminados a quente e as folhas metálicas representaram mais de 15% do tombo nas vendas.
Em números finais divulgados pela entidade, o Brasil importou em junho 225.970 mil toneladas de aços vindos de diversos fornecedores globais, contra 188.994 mil toneladas registradas no mês anterior, o que, portanto, resultou em um crescimento da ordem de 20% nas operações. E para as importações, a expectativa do INDA para os próximos meses é de que a situação também permaneça muito próxima desse patamar, uma vez que muitas encomendas feitas no começo deste ano estão chegando agora no Brasil.
“Trata-se de uma situação de certa forma anunciada, pois com a falta de aço na retomada forte da economia no início de 2021, os consumidores naturalmente buscaram novas fontes de fornecimento, uma vez que mesmo com a ampliação de oferta não era possível atender a toda demanda, não se importando muito com os preços, uma vez que a falta do produto era evidente”, pontua acerca do tema o presidente do INDA, Carlos Jorge Loureiro.
Estamos recebendo agora, através dos importadores, aços com preços menores daqueles que estão sendo praticados hoje pelas distribuidoras, uma vez que estes produtos foram comprados no exterior com os preços daquela época. Por isso é notada a defasagem de preços entre os aços importados e aqueles oferecidos pelo distribuidor nacional.
E vale lembrar que para a distribuição, os ajustes no preço do aço, subiram em 2021 cerca de 65% em relação ao final do ano passado.
Loureiro entende que o mercado permanece forte, mas, evidentemente, com a chegada dos aços importados, haverá uma acomodação natural com os compradores, buscando os melhores preços sejam de importadores ou de distribuidores. Contudo, ele também diz que as margens da rede de distribuição já estão recuando, e fatalmente devem recuar mais, uma vez que o mercado é um só, e estará sendo fortemente disputado. Sendo assim, a expectativa do INDA para o próximo trimestre é de que o quadro provavelmente permaneça o mesmo, com queda nas vendas das distribuidoras e a chegada de aço importado com preços inferiores aos praticados pelas usinas.
Mas a previsão do Instituto é de que o mercado tende a voltar à normalidade até o final do ano, com as distribuidoras atendendo aos clientes menores que não tem acesso às usinas, principalmente pela questão da quantidade, uma vez que as siderúrgicas nacionais deverão continuar dando prioridade ao atendimento dos heavy users, tais como a indústria automotiva, por exemplo. “Com isso, os demais consumidores deverão passar a se abastecer com volumes parte das usinas e parte dos distribuidores, sem deixar de fazer algumas compras no mercado internacional. Em outras palavras, a importação deve continuar, mas em outros patamares, uma vez que as compras que estão sendo fechadas agora já se referem a preços atualizados, e chegarão ao Brasil apenas daqui a quatro ou cinco meses, com preços muito maiores ou até superiores aos praticados internamente”, conclui Loureiro.
CAUTELA NA AMÉRICA LATINA
E, pelo que afirmou Alejandro Wagner, diretor executivo da Asociación Latinoamericana del Acero (Alacero) à reportagem da revista Siderurgia Brasil, a região está preparada para encarar esse desafio. Segundo ele, a pandemia da COVID-19 reduziu bastante o consumo de aço, mas a recuperação está se dando na mesma velocidade da queda. “As empresas do setor do aço da América Latina se organizaram rapidamente para ajustar os tempos de produção e atender ao aquecimento do mercado, gerando uma queda nos estoques intermediários de maneira pontual. Hoje, essa situação encontra-se normalizada na região”, sublinha.
Assim, frente a uma situação conjuntural, Wagner diz que não lhe parece muito prudente tomar medidas que possam ter efeitos estruturais no médio e longo prazos, tais como abrir as portas da região para a importação de aço a partir de países que não praticam economia de mercado, o que, entre outras coisas, colocaria em risco os 1,2 milhão de empregos locais, além de provocar desindustrialização. “Acreditamos que a normalização, abre uma margem para que a crescente demanda interna seja preenchida pela produção local. E, para obter o máximo proveito da potencial desaceleração da produção chinesa no futuro, os governos latino-americanos precisam criar condições que ajudem os produtores de aço regionais a competir globalmente, como aliviar a carga tributária e simplificar a logística e a burocracia”, postula o diretor executivo da Alacero.