À medida que o conflito entre Rússia e Ucrânia se agrava, um cenário de profundas incertezas se instalam no mundo. E, claro, quem vai acabar pagando grande parte dessa conta é a indústria e a economia global.
Marcus Frediani
Além de uma crise humanitária de proporções alarmantes, a guerra na Ucrânia tem potencial – e efetivamente já vem causando – uma série de negativas influências na economia global. Será um conflito longo ou está prestes a acabar? Será que ele vai se espalhar para fora das fronteiras do país sob ataque e se estender para a Europa? Ainda pode haver, apesar de tudo, uma possível solução diplomática para resolvê-lo, e qual será o preço a ser pago por isso? A liberdade e a soberania dos outros países antes pertencentes à antiga União Soviética estarão comprometidas e ameaçadas a partir do que vier a acontecer? No estágio atual, todas essas são incógnitas, cujo desfecho é difícil e até mesmo impossível de prever.
Porém, independentemente do desenlace da contenda, um aspecto já se configura como realidade acachapante: seus impactos já se espalharam e continuam se espalhando pelos quatro cantos do planeta, gerando um cenário de múltiplas incertezas quanto ao novo desenho geopolítico que ela irá estabelecer e, porque não dizer, ao futuro da economia mundial a partir do que irá acontecer, incluindo, é claro, a do nosso país.
Para tentar jogar luz sobre esse espinhoso tema, a revista Siderurgia Brasil conversou com dois respeitados especialistas brasileiros: o professor do curso de Relações Internacionais da Universidade do Vale do Itajaí (Univali), Daniel Corrêa da Silva, e o analista de economia e CEO da Vallus Capital, Caio Mastrodomenico. Confira o que eles nos revelaram neste painel exclusivo de entrevistas.
Siderurgia Brasil: Como vocês avaliam os impactos da guerra Rússia X Ucrânia na economia global, que, antes da deflagração do conflito, no plano internacional e no Brasil, já alinhava perspectivas relativamente positivas no que diz respeito à normalização e à retomada dos negócios?
Caio Mastrodomenico: Como todo período de guerra, a da Rússia X Ucrânia gera instabilidade para além dos territórios diretamente envolvidos. Isso se dá pelo potencial de ambos os países no que tange à produção de commodities e insumos mundialmente demandados como, por exemplo, o petróleo e seus derivados, que sustentam toda cadeia de produção mundial, e os fertilizantes, como potássio e nitratos usados em larga escala nas lavouras de todo planeta. O Brasil, por ser um país com PIB avolumado pelo setor agrícola, acaba sentindo o efeito da especulação sobre esses insumos antes dos demais países, o que, no curto prazo, gera aumento imediato nos custos de produção, com reflexos no preço final dos produtos.
Siderurgia Brasil: É o caso das especulações no setor de petróleo, não é mesmo?
Caio: No caso do petróleo, não se trata apenas de especulação. A Rússia injeta mais de 5MM de barris de petróleo diariamente no mercado mundial e, nesse período de guerra, a produção se volta a abastecer a frota militar russa, que consome níveis elevados de combustíveis. Somado a isso, as sanções internacionais contra o país reduzem ainda mais a oferta no mercado, elevando o preço do petróleo Brent a níveis alarmantes, o que contribui ainda mais para o aumento dos custos de produção e aumento dos níveis de inflação mundial. De seu lado, o Brasil vem procurando atravessar esse cenário de turbulências lançando mão de uma série de estratégias econômicas para conter o avanço dos preços, tais como a desoneração das operações financeiras sobre a importação de insumos escassos, o incremento de suas relações internacionais em busca de novos parceiros comerciais para diminuir a dependência econômica dos países em guerra, ações voltadas a atrair investidores e valorizar a moeda Real, além de outras bastante conhecidas, tais como a elevação da taxa de juros interna. Então, acredito que aqui no Brasil, tais medidas econômicas internas têm potencial para resultar em mais equilíbrio na balança comercial, evitando desabastecimento e contendo aumentos repentinos causados pelas especulações desse período. Trata-se, entretanto, de uma engrenagem que precisa de lubrificação constante para rodar, visto que cada um desses ajustes gera também efeitos colaterais em toda cadeia nacional, com reflexos diretos na vida dos brasileiros.
Daniel Corrêa da Silva: Acerca dessa questão, julgo importante ressaltar alguns aspectos que julgo fundamentais. Com efeito, antes dos ataques da Rússia à Ucrânia, tínhamos, efetivamente, um cenário de perspectivas de retomada muito melhor no que diz respeito à economia mundial. O Fundo Monetário Internacional (FMI) esperava um crescimento global da ordem na média de 5,9%, cifra que já foi revisada para 4,4% após a instalação do conflito. No Brasil, que teve uma evolução de 4,6% no ano passado, oficialmente registrada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a estimativa do Fundo era de que ela aumentasse para 4,7% em 2022, o que representava apenas 0,3% de aumento em relação à cifra anterior.
Siderurgia Brasil: Em outras palavras, na prática, uma expectativa de estagnação.
Daniel: Correto. A título de comparação, o segundo país que cresceria menos entre os ditos emergentes seria a África do Sul, tinha previsão de crescimento de 1,9%, ou seja, praticamente seis vezes mais do que a estimativa para a economia brasileira que, aliás, entre as economias emergentes era a que já prometia evolução mais modesta. Em uma média em que se tinha 4,6%, o Brasil estava e continua estando mais de dez vezes abaixo da média da estimativa mundial. E como nosso país é altamente dependente de produtos semielaborados para poder dar o seu salto industrial, com a guerra na Ucrânia essa projeção inicial também está sendo revista para baixo. Para piorar, o mencionado instrumento bastante conhecido que vem sendo utilizado pelo governo brasileiro, a elevação das taxas de juros, é praticamente inócuo para enfrentar a disparada dos preços internacionais que o conflito está ocasionando.
Siderurgia Brasil: Por quê?
Daniel: Principalmente, porque, no ano passado, o Brasil já enfrentou uma pressão inflacionária muito grande em função de duas naturezas fundamentais: a primeira é a dos preços administrados pelo governo federal, cujos reajustes se devem, majoritariamente, às agências reguladoras nacionais; e, a segunda, é de fato uma quebra nas cadeias internacionais de distribuição, em função do caráter absolutamente heterogêneo na forma de como os países lidaram com a pandemia da COVID-19, alguns deles com restrições totais, e outros com um relaxamento total de suas atividades, o que acabou provocando uma super oferta de mercadorias em certos lugares, e uma falta gigantesca em outros. E tais problemas a gente não consegue resolver apenas com a elevação dos juros. E o resultado imediato disso é e continuará a ser, inevitavelmente, o aumento da inflação interna, porque, embora a taxa de juros seja um bom instrumento para combate à inflação quando se tem uma economia superaquecida e uma demanda em alta, na qual torna-se necessário diminuir o ímpeto do consumo, o que, infelizmente, não é o nosso caso. Então, na prática, esse é um remédio equivocado para a causa da inflação, razão pela qual sua escalada será inevitável em 2022, num ritmo que deverá ser intensificado pela guerra na Ucrânia. E os primeiros efeitos disso já começaram a ser sentidos por aqui, como a disparada dos preços do petróleo e do gás natural, que certamente continuará a pressionar os preços derivados de combustíveis. Claro, o Brasil tem outras fontes de fornecedores internacionais, como o Canadá, Arábia Saudita e até os Estados Unidos. Mas fazer toda uma operação para mudar essa matriz certamente também continuará a trazer impactos sobre o “Custo no Brasil”.
Siderurgia Brasil: Falando, agora, especificamente da siderurgia, temos, basicamente, duas situações. Embora as operações comerciais com a Rússia não sejam tão relevantes no momento, no contraponto, algumas usinas instaladas no Brasil costumam comprar volumes relativamente significativos de chapas e placas de aço vindas da Ucrânia. Some-se a isso o fato de que a série atual de sanções e bloqueios que estão sendo realizados, também certamente trarão como impacto a diminuição da oferta global de aço e, eventualmente de insumos como o minério de ferro e a sucata. O que podemos esperar desse imbróglio?
Caio: Assim como o petróleo, a diminuição na oferta de minério de ferro e aço tende a gerar instabilidade nos preços dessas commodities. Com isso, o setor siderúrgico nacional sentirá os efeitos da especulação dos mercados e da diminuição na oferta imediata. No caso da oferta das bobinas de aço – cujos preços subiram muito no início de 2021, atingindo níveis recordes, entrando, depois, em trajetória de queda –, os efeitos da guerra parecem ter dado início a uma reversão na curva de preços, novamente performando uma tendência de novos aumentos, ainda pequenos, é verdade, se comparados ao segundo semestre de 2021, em um cenário, entretanto, que pode ser considerado estável. Assim, acredito que o mercado se ajustará à escassez dos insumos impactados pela guerra, e a escassez do aço ucraniano certamente fará com que as companhias siderúrgicas brasileiras passem a diversificar suas jazidas e a investir em aumento da exploração em países mais pacificados como é o caso do Brasil, que, na contramão da crise mundial, poderá se transformar em uma opção de crescimento do nosso país na participação do fornecimento desses insumos para o mundo.
Daniel: A Rússia, efetivamente, não é um mercado tão forte para a indústria siderúrgica nacional, em linha com o que se observa com a movimentação que o Brasil tem com os países do Leste Europeu, entre os quais a própria Ucrânia e a Bielorrússia. E quando a gente trata especificamente de produtos semielaborados de aço, categoria na qual entrariam essas chapas e placas, o que o Brasil traz da Ucrânia não é também um valor tão expressivo assim em termos do volume total do que o nosso país compra desses produtos no mercado internacional. Mas, sim, de tudo que o Brasil importou da Ucrânia mais da metade deles foram semielaborados de aço, o que, em termos de Balança Comercial com aquele país, representou uma movimentação de, aproximadamente, US$ 100 milhões em importações de produtos semielaborados de aço, sobretudo chapas e placas. Só que esse valor não chegou a 0,5% do total importado pelo Brasil desses itens, sendo que o principal parceiro comercial em termos de importações de semielaborados de aço segue sendo a China, que responde por 25% de tudo que o Brasil compra, seguida por outros países de quem o Brasil compra algo em torno de 10%, como é o caso dos Estados Unidos e a Suécia, da Alemanha e da Índia – este último com alto fornecimento realizado pela ArcelorMittal –, de quem nosso país compra 5% do total de chapas e placas no mercado internacional. E aqui, vale abrir um parêntese importante: a Ucrânia, além de ser vendedora das placas de aço, também é uma compradora expressiva de minério de alumínio: 11% do que o Brasil exporta para a Ucrânia envolve esse insumo. Existe uma conexão na área de metais em geral com aquela região.
Siderurgia Brasil: E em termos de preços dessas importações?
Daniel: Bem, as placas também tiveram uma alta expressiva, principalmente no 2º Semestre do ano passado. Observando os preços internacionais, eles variaram praticamente 50% de julho a dezembro de 2021, voltando a patamares próximos das altas históricas lá no ano de 2001. Contudo, fazer previsões de como será o comportamento dos preços desses produtos no cenário de continuidade dos ataques à Ucrânia é algo complicado, até porque o período de duração do conflito ainda é bastante incerto. Entretanto, fazendo um balanço geral, entendo que a tendência é continuarmos tendo altas nos preços do minério de ferro e dos semielaborados de aço, como as chapas e placas. E como o que a gente mais importa são os semielaborados, estimo que isso deverá elevar os custos para a indústria, porque a valorização na matéria-prima não tende a ser superior à valorização que deve acontecer no próprio produto intermediário, principalmente em função das quedas das cadeias de fornecimento, que devem acontecer na própria Rússia, na Ucrânia, na Bielorrússia e na Romênia. E isso também vai gerar impactos, porque mesmo que ambos estejam em alta, o que nós vendemos não vai ter preços tão majorados quanto ao que nós compramos. Outra questão em âmbito nacional, é que a gente pode ter impacto de elevação de custo para a indústria de transformação no Brasil, que faz uso desses semielaborados de aço para dar forma final a seus produtos, notadamente no que diz respeito a três estados brasileiros: em primeiro lugar, Santa Catarina, que é o estado que mais consome esses produtos semielaborados pois é aqui que mais se importa; em segundo, São Paulo; e, depois, o Rio Grande do Sul e o Paraná, que também são grandes importadores dessas chapas metálicas.
Siderurgia Brasil: Como é amplamente sabido, em 2021, o mundo enfrentou uma séria crise de distribuição e fornecimento de semicondutores vindos da Ásia, utilizados em eletrônicos. No Brasil, um dos setores que mais sofreu com isso foi o da indústria automobilística, que, segundo a ANFAVEA, deixou de produzir 300.000 veículos só no ano passado. Agora, com a guerra na Ucrânia, analistas já falam na continuidade desse problema, porque, de lado, a Ucrânia é uma das grandes produtoras de gás néon, fundamental para a fabricação de chips, e de outro, a Rússia é um grande exportador de paládio, metal raro utilizado na produção desses componentes. Qual a opinião de vocês acerca dessa questão, e da prevista normalização do problema ao longo do 2º Semestre de 2022?
Caio: Realmente, a escassez de metais raros como o paládio é um sério problema para a indústria que faz uso de semicondutores. Ainda é incerto prever uma melhora ou estabilização na produção de microchips e, sabendo disso, as montadoras estão buscando se adaptar à realidade que o mercado está atravessando. Por exemplo, para reduzir o tempo de entrega, várias mudanças e alternativas como algumas já estão oferecendo veículos com menos opcionais de entrega, enquanto outras chegam a oferecer créditos em dinheiro para que o cliente aceite o veículo com a ausência de determinado item.
Talvez os efeitos econômicos decorrentes da pandemia, somados ao possível agravamento da guerra Rússia X Ucrânia não nos permita rapidamente alcançar o patamar de produção de semicondutores semelhante ao período pré-pandemia. Mas, talvez isso seja uma tendência de mercado que ainda não percebemos, como também uma forma de agregar maior valor financeiro aos automóveis.
Daniel: Sem dúvida, o Brasil e o mundo ainda vão continuar enfrentando problemas estendidos no setor de semicondutores e, particularmente, não acredito que a previsão de normalização do setor nesse 2º Semestre de 2022 irá se confirmar. A guerra na Ucrânia continuará a ser um fator impactante contrário a essa projeção. O fato de pelo menos três grandes armadores internacionais – Hamburg Sud, a Maersk e a MSC – terem aderido às sanções contra a Rússia, certamente terão efeitos sobre as cadeias produtivas e sobre a já observada quebra destas. E nem os aparentes posicionamentos de neutralidade da China devem mudar esse cenário, porque todos eles foram nebulosos e inconsistentes, até porque China e Rússia têm parcerias estratégicas e cooperações técnicas importantes nos setores de infraestrutura, de energia e financeiro, no memorando conjunto que foi publicado no final do ano passado entre os dois países, e início de 2022, a propósito das Olímpiadas de Inverno realizadas na China. Então, o cenário para a indústria automobilística brasileira em face à escassez de semicondutores – entre outros setores da indústria que também dependem desses componentes –, e ainda por conta da própria queda na renda dos brasileiros, infelizmente deverá continuar bastante desafiador.
É esperar para conferir.